Não sei se, em algum momento, assim como eu, você já se perguntou qual seria o valor do silêncio, e como o não dito molda a experiência tanto quanto o conteúdo explícito. E, afinal, como devemos entender os silêncios?
O silêncio é uma provocação. Funciona como um respiro entre informações, uma suspensão que permite que o impacto chegue, que o pensamento se reorganize, que a experiência se torne mais profunda.
Esses intervalos, longe de serem omissões, são mecanismos fundamentais de criação de sentido. Vamos analisar isso mais de perto!
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Os espaços entre os quadros
Um dos meus universos favoritos, os quadrinhos, os silêncios entre os quadros são mais perceptíveis e por isso mais fácil de começar essa reflexão, chamados de gutter ou sarjeta.
De acordo com McCloud (2005), nós percebemos o mundo através da experiência dos nossos sentidos, mas é um mundo fragmentado, tornando a nossa percepção de realidade igualmente incompleta. Mas aprendemos a observar as partes e perceber o todo, a isso damos o nome de conclusão. Nesse sentido, nas histórias em quadrinhos temos o que é visto e o que não é visto, separado por esse limbo, por um silêncio, com a necessidade de completude que só pode vir por parte do leitor. Ele que unificará os quadros e empregará sentido de continuidade a narrativa com base nas pistas deixadas.
Os quadros das histórias fragmentam o tempo e o espaço, oferecendo um ritmo recortado de momentos dissociados. Mas a conclusão nos permite conectar esses momentos e concluir mentalmente uma realidade contínua e unificada.
– Scott McCloud
Com base nisso podemos concluir que os espaços entre os quadros dispostos nas páginas, operam de duas formas: estética, separando os painéis, organizando a página e guiando o olhar do leitor e como limbo narrativo no qual o leitor reconstrói ações não representadas e constrói um diálogo com a obra e o autor.
Nesse lugar de conclusão, entra um ponto-chave para essa reflexão que é o universo do leitor que é indissociável das suas experiências e percepções, é nesse lugar que o silêncio se torna mágico. Mil pessoas podem ler os mesmos quadros, mas terem conclusões diferentes, preencher esse mesmo espaço com vozes e pesos diferentes, uma vez que nossos sentidos nos guiam nessa jornada.
Montagem e o silêncio simbólico do cinema
Os cineastas nunca perdem o controle do acontecimento, mas ao mesmo tempo sua grandeza é maior do que eles, e a poesia das imagens é sempre mais forte e mais rica em interpretação do que a que eles podem lhe atribuir.
– André Bazin
No cinema, para longe do cinema mudo, prefiro me ater no terreno do simbólico. Por mais que tenha uma sequência de imagens juntas em evidência, há uma espécie de jogo sobre o que se mostra e o que permanece subentendido, uma espécie de jogo silencioso que ativa a imaginação do espectador mais do que qualquer diálogo poderia fazê-lo. Uma mágica que acontece diante dos nossos olhos.
Os cineastas usam diversos recursos, o que eu mais gosto é a mise-en-scène que captura o espectador e o leva para o mergulhar na história. Mas a montagem, sem dúvida, é quem guarda as chaves do segredo.
A montagem é o espaço secreto do cinema. Entre um plano e outro, existe um intervalo, entre a ação e o corte. É ali que o filme pensa. Ali que o espectador conecta o que o diretor não diz, mas insinua. É o elo invisível que transforma fragmentos em fluxo, e fluxo em sentido.
Mas assim como nos quadrinhos, no cinema o silêncio é a ponte, para o espectador/leitor enfim poder empregar sentido. A arte pensa, respira e dialoga.
Em outros universos
É fundamental reconhecer que toda obra carrega pausas, silêncios e espaços em branco. Até na música, onde tudo parece vibração contínua, o silêncio, a pausa, é necessário para o som existir com clareza. Sem ele, tudo vira apenas barulho.
Na literatura, os vazios entre capítulos ou as quebras de texto funcionam como espaços que regulam o ritmo e abrem margem para interpretações próprias. Esses intervalos, longe de serem omissões, são mecanismos fundamentais de criação de sentido.
Na escultura e pintura o silêncio se difere. O silêncio ter corpo, textura, luz e peso. Ele vive nos intervalos do olhar, no tempo que o espectador leva para decifrar o que não está explícito.
A contemplação e a ocupação dos espaços em branco como revolução
Após vir de um mergulho em Byung-Chul Han, comecei a pensar na importância dos espaços e a perceber a existência deles. Estamos tão atolados em informações e estímulos, que esquecemos que existe o vazio, a solidão e os espaços em branco.
Chul Han, nos descreve como a Sociedade do Cansaço, justamente por estarmos imersos em um mundo de excessos e que gradativamente nos leva em direção ao infarto da alma. Nesse cenário, somos senhores e escravos de nós mesmos em um ciclo positivo de autocobranças por performances e resultados, a chamada sociedade do desempenho, na qual acabamos também por cair na lógica do consumo.
Bauman indica que estamos cada vez mais perto de nos tornar máquinas, sem foco, sem grandes sentimentos, apenas voltados para o consumo. Desejamos tudo, consumimos tudo e mesmo assim estamos insatisfeitos. Segundo Han, perdemos a alteridade e sem ela perdemos a capacidade também de amar.
Com esse cenário, perdemos também outra coisa: A Contemplação. Esse espaço em branco da vida, onde não há barulho, tem a solidão. Desaprendemos a ver os espaços em branco e construir sentidos ou diálogos internos e externos. Esquecemos dos espaços em branco presentes nas obras, e estamos focados só em consumir.
E nesse ponto nasceu esse texto, do desafio a contemplação e preenchimento dos espaços em branco, não instrumentalmente, mas como reflexão. A jornada foi com o primeiro passo: reconhecer os espaços, depois entender as suas exigências e por fim, como pensar nesses espaços em branco. Relembrar que arte antes de mais nada é uma magia que convida a contemplação, não entretenimento cheio e pesado que precisa descer e entrar na cabeça.
O ato de revolução em meio a tantos estímulos, em meio ao consumo desenfreado, em meio ao cansaço é o retiro ao vazio. As pausas que empregam sentido e conclusão. Em meio a tanto barulho, o maior desafio é ouvir a própria voz. Em um mundo que respira IAs, o autêntico é uma revolução.
Gosto de pensar no silêncio e pausas, como um convite ou um desafio de sair do monólogo e entrar em um diálogo com a obra. Os espaços em branco se tornam esse lugar de participação, onde deixamos de ser apenas consumidores e somos desafiados a algo mais...
O que me leva a outro ponto nessa jornada, será que sabemos usar os espaços? O que sobra quando todas as vozes se calam? Será que conseguimos seguir no silêncio das outras vozes e ouvir a nossa própria voz preenchendo os espaços?
No fim das contas, o silêncio não é ausência: é fronteira. Uma espécie de linha tênue onde a vida deixa de obedecer aos ruídos, deixa de ser caos e começa a ganhar ordem. É nesse intervalo esquecido, que a alma recupera o fôlego, resgata a imaginação e livra a alma do infarto e do cansaço.
Obrigada por ler até aqui, espero que gostem desse texto regado a café e reflexões.
Notas do Rodapé:
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.
HAN, Byung-Chul. A agonia de eros. 1. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
MCLOUD, Scott. A narrativa sequencial. 1. ed. São Paulo: M. Books, 1995.

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